Onde o exercício militar falha

Vejo em um dos jornais recentes que alguém se revelou como o inventor original do Escotismo. Este é o quarto em que agiu assim em quatro anos. Tenho para mim que o fundador original, Epictetus(2), morreu muitas centenas de anos atrás.
Este em particular fala que nós pervertemos os ideais originais dele e que não somos suficientemente militarizados.
A verdade é que esses cavalheiros vêem uma semelhança em nossa tropa com algo que eles imaginaram para eles, mas não estudaram a fundo e não puderam perceber, portanto, seu significado ou suas possibilidades.
Qual nosso objetivo? Eles parecem não considerar isto como alguma coisa importante no argumento deles. Mas acontece que é a pedra angular na qual a questão se apóia.
Nosso objetivo é pegar os jovens e abrir suas mentes, revelando o caráter de cada rapaz (e não há dois exatamente iguais), fazendo-os bons homens, para com Deus e sua pátria, encorajando-os a serem trabalhadores enérgicos e serem honrados, varonis e com sentimento fraterno uns com os outros.
Como o nosso Movimento atrai todas as classes ( os mais pobres têm iguais chances e consideração tanto quanto os mais afortunados), muita da desigualdade humana do presente será transformada em valorosa cidadania. É pelo caráter de seus cidadãos, e não pela força de seus braços, que um país se mostra superior em relação a outros.
B-.P em revista aos lobinhos


Se pudermos instigar aquele caráter e senso de fraternidade em todos os nossos jovens, em casa e nos domínios britânicos ultramarinos, estaremos forjando um elo mais forte do que o que une no momento o Império inteiro.
E como o Movimento torna-se firme, como está acontecendo também em países estrangeiros, promoverá um laço comum de simpatia que traz a paz entre as nações.
Nossas oportunidades e possibilidades nesse sentido são imensas, e estes são os objetivos que nossos Chefes Escoteiros têm ao planejar seu trabalho.
Mas nossos originais inventores aparentemente nunca pensam nessas finalidades. Isto certamente não poderão alcançar através do exercício militarizado mais do que poderiam alcançar ensinando seus avós a andar na corda bamba.
Pessoalmente não ousaria falar disto não fosse por ter alguma experiência nesse assunto em particular. Uma boa parte da minha vida foi gasta treinando rapazes para serem soldados, cadetes ou Territorials (3), e servi com todos eles na ativa em mais de uma campanha. Tive oportunidade de ver os cadetes novamente na África do Sul e Canadá, e, nos primeiros tempos na Nova Zelândia e Austrália. Estas visitas me confirmaram a opinião que então expressei, ou seja, aquela que com o excelente material que encontramos em nossos jovens por todo o Império é bastante possível mandar para fora uma impressionante força de cadetes, todos habilidosos em manobras, cheios de autoconfiança, fardados com esmero, e com alto percentual de atiradores de elite. Mas muitas pessoas parecem achar que homens bem treinados são necessariamente bons soldados. Eu os testei em serviço e tive pouco uso para eles. Quanto melhor o soldado é exercitado em ordem unida, menos pode-se confiar nele para agir com responsabilidade individual.
A chamada disciplina era muito competente para impor neles o medo pela punição ou reprimenda, em vez de impor o espírito de agir corretamente. E este é essencial, se você não quer meramente dar um verniz de obediência, que não resiste a um teste de serviço.
Estas coisas, e muitos outros atributos do bom soldado, que podem ser resumidos na palavra caráter, devem ser instilados neles antes de poder considerá-los adaptados para o treinamento militar em ordem unida. Este é, na realidade, o polimento final, e não, como muitos parecem pensar, o primeiro passo para fazer um homem batalhador.
Os Boers nunca foram treinados militarmente, contudo se mostraram bons lutadores, e resistiram a nossas tropas treinadas em uma campanha de mais de dois anos.
Por que isso aconteceu? Porque eles tinham o lastro apropriado de caráter para a tarefa – eles eram independentes e diligentes, especializados em usar melhor sua coragem, bom senso e astúcia, (os três que fazem um bom soldado – coragem, senso comum e destreza). Aqueles homens só precisaram de um polimento final de ordem unida e uma disciplina um pouco mais forte para torná-los muito melhores soldados.
Esta é a seqüência de treinamento necessária. Se você aplica o sentido contrário, obtém somente o aspecto atraente. Você precisa, como essência, primeiramente ter o caráter estabelecido como seu lastro de trabalho.
Agora, qual é o objetivo dessas pessoas que querem treinamento militar em seus jovens?
Ordem unida nunca fará um bom cidadão, o que é bastante óbvio.
O objetivo deles deve ser então (a) fazê-los soldados em potencial para eles e (b) pegar os jovens com fascinação por ordem unida e assim trazê-los debaixo de alguma forma de disciplina e exercícios que são bons para eles.
No primeiro caso é essencial que os Chefes Escoteiros tenham instrutores excepcionalmente bons, caso contrário o ensino de disciplina nas paradas uma ou duas vezes por semana provavelmente não terá um efeito muito duradouro no caráter dos rapazes, e também o treinamento enfraquece no jovem depois de algum tempo e o afasta de tornar-se um soldado mais tarde. Se ele se engaja pensando que sabe tudo sobre o assunto, seu espírito, acostumado com o sofrimento temporário, ressentir-se-á com a disciplina quando estiver sob uma coisa tão real quanto permanente.
Como Oficial, simpatizo totalmente com alguém que disse que preferiria ter recrutas que nunca foram treinados, a esses que descreveu como "pães meio assados, que estavam crus, foram amassados novamente, e assados de novo antes que fossem bons soldados".
Em todo caso os líderes desses jovens poderiam aconselhá-los melhor a se tornarem cadetes genuínos e não mascará-los como Escoteiros.
No outro caso (b), a atração e treinamento de jovens rebeldes é certamente mais recomendável, e de longe o meio mais fácil para lidar com eles no que diz respeito ao comandante.
Mas então porque não unir-se à Associação Cristã de Moços ou aos Jovens da Igreja, cujo treinamento segue aquela direção?
B-.P saúda jovens facistas
Por transformarem nossa roupagem, mas não nossos idéias, ele espalham falsos conceitos sobre nossas intenções. Os pais e o clero supõem naturalmente que a arte militar é o fim e o objetivo do treinamento Escoteiro, e reagem de acordo. Eles não percebem que estamos trabalhando em um plano muito mais alto que aquilo, ou seja, fazer bons e bem sucedidos cidadãos.
Claro que há muitos Chefes Escoteiros em nosso Movimento que gostariam de dar um tom definitivamente mais nacionalista no treinamento de seus jovens. Eles acham que os jovens por si mesmos não percebem que o treinamento do caráter deles como escoteiros será a base de melhor qualidade para atingir metas futuras, seja ela tornar-se um soldado ou marinheiro, cidadão ou colono.
(Uma pequena prova nesse sentido é encontrada no Corpo de Cadetes dos Domínios Ultramarinos. Eu fui inspecionar os Cadetes, e encontrei algo em torno de 80 por cento de Sargentos Cadetes que foram Escoteiros de início.)
Bem, eu estou completamente de acordo com o sentimento de parte de nossos Chefes Escoteiros, e penso que encontrarão uma abertura no novo esquema dos Escoteiros Senior que agora está sendo criado, quando, com a base estabelecida e os jovens com idade para julgar por si mesmos, eles poderão seguir em alguma das linhas colocadas acima que possa atraí-los.

Janeiro de 1914

(1) Were Drill Fails (onde a ordem unida falha) – Drill: ordem unida.



(2) - Epiteto, em grego: epiktetos, "comprado" (* em Hierápolis, Frígia 55 - † Nicópolis, Épiro 135) foi um filósofo grego estóico que viveu a maior parte de sua vida em Roma, como escravo a serviço de Epafrodito, o cruel secretário de Nero que, segundo a tradição, uma vez quebrou-lhe uma perna. Apesar de sua condição, conseguiu assistir as preleções do famoso estóico Gaio Musônio Rufo. De sua obra se conservam um Enchyridion, o "manual de Epiteto", e alguns discursos - editados por seu discípulo Flavio Arriano. Como viver um vida plena, uma vida feliz? Como ser uma pessoa com boas qualidades morais? Responder a estas duas perguntas fundamentais foi a única paixão de Epiteto. Embora suas obras sejam menos conhecidas hoje em função do declínio do ensino da cultura clássica, tiveram enorme influência sobre as ideias dos principais pensadores da arte de viver durante quase dois mil anos.Para Epíteto, uma vida feliz e uma vida virtuosa são sinônimos. Felicidade e realização pessoal são consequências naturais de atitudes corretas.